Você já olhou para fora da janela hoje?

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segunda-feira, 13 de outubro de 2008

SALVAGUARDAR A LUCIDEZ

SALVAGUARDAR A LUCIDEZO GLOBO - 1º CADERNO - OPINIÃO - 22 de setembro de 2007
Uma conhecida história conta que o rabino viu um sujeito correndo desenfreado pelo mercado. Esbaforido, segurava com uma mão a mala e com a outra o chapéu para que não voasse. O rabino chamou o homem que, entre golfadas de ar, o cumprimentou. “Para onde você corre com tanta pressa?”, perguntou o rabino. “Como assim?”, disse o homem, não escondendo sua irritação por ter que parar. “Estou tentando ganhar a vida e corro atrás de meu sustento! Há oportunidades lá na frente que, se eu não correr, serão perdidas!” “E como você sabe que as oportunidades estão à sua frente?”, disse o rabino. “Quem sabe elas estão ao seu lado, ou, pior, talvez estejam atrás e você se afastando cada vez mais delas?” O homem ficou sem ação, ao que o rabino concluiu: “Meu amigo, não estou dizendo que não deva ganhar seu sustento, mas me preocupo que, na obsessão com seu ‘ganhar’, esteja comprometendo a ‘vida’.”

Realmente há algo de errado na expressão “ganhar a vida”, até porque a vida já está ganha. A diferença entre “vida” e “sustento” está no centro das questões de nosso tempo. Será pela qualidade dessa reflexão que teremos um futuro amigável ou litigioso. Fazer a vida girar em torno do sustento é algo semelhante ao vício cultural de dizer que o “sol nasceu”, implicando que é ele e não a Terra que experimenta o movimento de rotação. Saber distinguir o pivô do que é orbital é o início de toda a inteligência e a possibilidade de anteciparem-se mecânicas e trajetórias.

O nosso mundo é bem caracterizado por esse sujeito com uma mão na mala e outra segurando o chapéu. A mala é representativa de nosso materialismo desmedido, já a mão que segura o chapéu é simbólica da desagregação da identidade num individualismo exacerbado. O mundo é hoje regido pelo sustento. Essa foi a grande parceria entre comunismo e capitalismo que, mais do que adversários, estabeleceram definitivamente o sustento como a haste central de políticas públicas e da cultura. Talvez, em seu embate secular, ambos os sistemas tenham nos distraído da revolução central na cultura planetária que promoviam. Hoje, com todos os dados que temos do litígio que teremos com o futuro, ainda assim há uma lógica do “sustento” que se sobressai à lógica da vida. E nós não ficamos chocados com isso. Nós entendemos. O impacto econômico seria por demais desestabilizador. Interesses importantes ficariam comprometidos. Compreendemos e acolhemos a mesma lógica nazista, indiscutivelmente racional, que não se poupou em usar a vida como combustível para alimentar o desenvolvimento sustentável das circunstâncias de então.

E as políticas de sustentabilidade são hoje um band-aid em fratura exposta. Paliativos que terão pouco impacto na força acumulada pela inércia da cultura. É a cultura que alavanca o movimento maior de massas, de bilhões que não poderão mudar de curso de um dia para o outro. Está na hora de não corrermos mais para a frente. Para o sustento que está sempre na frente. Estabelecer economias de crescimento como única opção de futuro não exige grande dom profético para antever o desastre. Não será bolha, será implosão mesmo. É hora de olharmos para o lado e até para trás e esperarmos por uma nova revolução na cultura humana. Uma revolução que se valha de outras sensibilidades que não apenas a racionalidade. Foi ela que construiu todas as revoluções do século XIX e que afetam a nossa cultura até hoje. Esse iluminismo cultural desbancou a vida e ungiu o sustento. As várias fomes da vida se fizeram em uma única, a do sustento, e está difícil alimentá-la.

O dia do Kipur é um dia para se ter coragem de falar sobre acertos que provavelmente não faremos. Mas essa prática não se faz vazia por conta da dificuldade em promover transformação. É que queremos salvaguardar a lucidez e mantê-la como uma chama para que, em condições favoráveis, ela realimente a labareda de uma nova cultura. Uma cultura na qual, por exemplo, crescer e ter mais não signifique sempre qualidade, em que as oportunidades talvez estejam em não crescer, ou até em decrescer. Celebrar a lucidez nos dá a dimensão de nosso pecado; jejuar dá espaço para outras fomes. E só quando essas fomes forem despertas no ser humano haverá sustento para todos.

NILTON BONDER é rabino e escritor.

2 comentários:

  1. Me parece que nesta cultura o homem que nasce pelado nasce sem nada. Não tem propriedade, não tem patrimônio.
    Somos ricos de vida, mas gastamos a vida correndo atrás de algo que a justifique, quando a justificativa está em viver.
    Mas como é difícil deixarmos-nos viver! Como é difícil tomar atitudes de mudança.
    Estou tentando visualizar caminhos, preparar o terreno, e aproveitar o momento, pois é no momento que vivemos.

    Livro recomendado: "O poder do Agora"

    Eu sou muito feliz porque sei disso mesmo quando tenho motivos para estar triste.

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  2. Parece que este mesmo tema (ambição, consumismo, poder, síndrome do "quero mais") está na raiz dos problemas da humanidade, aparecendo em diversas correntes de pensamento - desde a globalização alternativa de Hazel Handerson e do destino "apocalíptico" do Cristianismo, até em programas de consumo responsável de ONGs e em vídeos do YouTube.

    Entre os sintomas na vida moderna, posso citar o impulso cada vez maior das novas gerações em relação ao sexo - já não basta um parceiro, tem que ser em grupo, sem camisinha e com novidade toda noite. Ou a descartabilidade dos casamentos, afinal, se seu parceiro/a não te satisfaz, ou não faz o que "eu" quero, é "só" pular para uma outra. E não entendo porque todos meus amigos (me incluindo) "fazem questão" de viver em apartamentos de 150 m2, "no mínimo", quando eu (como todos eles) cresci feliz em uma apê de 100m2, numa família de quatro.

    Não tenho a resposta final, mas tem que passar pela falta de contato nossa espiritualidade, que é ainda "mais grave" que a falta de contato com nós mesmos...

    Enfim, para meditar...

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